Cultura dos Pescadores
(Excerto da comunicação “Cultura Avieira, Cultura de Pescadores”, apresentada no II Congresso da Cultura Avieira, Santarém, 17 de Junho de 2011)
A Cultura dos Pescadores tem suscitado interrogações em múltiplos domínios científicos, especialmente a partir do século XX, nomeadamente após o trabalho de Malinowski (1922) e especialmente o de Raymond Firth (Firth, 1946).
Um dos aspetos mais significativos destes trabalhos foi o de assinalar a diferença essencial entre estas comunidades de pescadores e as comunidades agrícolas, salientando, ao mesmo tempo, o papel destas últimas no desenvolvimento dos estudos e dos quadros metodológicos da Sociologia e da Antropologia.
Na verdade, mesmo o próprio termo “cultura”, demonstra claramente a predominância das realidades agrícolas e dos quadros mentais que posteriormente foram sendo aplicadas a outras comunidades, nomeadamente as urbanas, determinando fortemente as origens da construção teórica, metodológica e instrumental com que se têm abordado as comunidades humanas e as suas culturas. O próprio termo cultura evidencia a sua origem.
A compreensão da realidade das comunidades de pescadores, apresenta desafios que parecem claramente distintos das outras comunidades e, por outro lado, parecem escapar à compreensão integrada destas comunidades.
Em Portugal, as comunidades de pescadores têm sido também estudadas segundo diversas abordagens metodologicamente distintas, de acordo com quadros teóricos de domínios científicos diversos, que nos trazem informação valiosa.
Por exemplo, a Psicologia Social, com o trabalho de Celeste Malpique, que estudou a ausência do pai em pré adolescentes da comunidade da Afurada, analisando eventuais variações psicológicas ou psicopatológicas decorrentes de modificações na organização temporo-espacial e no aglomerado familiar (Malpique, 1990).
Outro domínio científico particularmente produtivo tem sido o da Antropologia Marítima, particularmente com Francisco Oneto Nunes, um nome igualmente essencial no contexto da compreensão da comunidade de pescadores em Vieira de Leiria, (Nunes, 1993), ou na caracterização mais particular da Arte-Xávega nessa localidade (Nunes, 2004), ou ainda na sua interessantíssima edição sobre Culturas Marítimas em Portugal, a qual desde já se aconselha para uma compreensão alargada, mas infelizmente, não tão alargada quanto até seria possível.
Teria evidentemente de destacar o trabalho de Orlando Ribeiro, Raquel Soeiro de Brito (Brito, 2009) e, muito particularmente por Henrique Souto, seja no estudo das comunidades de pesca artesanal (Souto, 2007), seja no estudo das suas migrações (Souto, 2003), completando três gerações de autores essenciais no domínio da Geografia.
Esta realidade foi também abordada com rigor e amplitude na perspetiva da História Económica por Álvaro Garrido, e também na História com Inês Garrido, especialmente no enquadramento da evolução das comunidades marítimas do nosso litoral ao longo dos tempos.
Já Leite de Vasconcelos tinha também assinalado estas comunidades, inclusivamente a “minha” Costa da Caparica (Vasconcelos, 1941). Também Veiga de Oliveira, tinha chamado a atenção para as construções típicas dos pescadores (Ernesto Veiga de Oliveira, 1994), particularmente desenvolvido, no caso Avieiro, pelos Arquitetos Pedro Manuel dos Santos Lima Gaspar e João Palla (Gaspar and Palla, 2009).
Enfim, todo este acervo de estudos, além dos que não menciono apenas por falta de espaço, possibilita a identificação de uma singularidade muito própria destas comunidades, evidenciando determinadas características, por exemplo, como assinala Yvan Breton: a fluidez e a flexibilidade (Breton, 1981).
Porém, estas comunidades parecem igualmente evidenciar uma diferença marcante com o todo nacional (e mesmo de forma transnacional), nomeadamente no que respeita à questão da incerteza, tal como definida no quadro de índices proposto por Hofstede, só por exemplo (Hofstede, 2001).
Um outro aspeto que tem sido salientado, é a sua grande diversidade, nomeadamente a capacidade de integrar elementos externos à sua comunidade, com características de sazonalidade, como os Barraqueiros na Costa da Caparica, oriundos principalmente de comunidades agrícolas de diversos pontos do país, e também dos Malteses, ou foragidos, que tradicionalmente eram também acolhidos por esta comunidade, como fica explícito no romance Calamento, de Romeu Correia (1950), e em vários outros testemunhos, ainda hoje facilmente identificáveis entre os membros mais antigos da comunidade caparicana. Sendo a própria comunidade de pescadores fruto de movimentos migratórios intensos, ao longo de épocas distintas, demonstrando a sua permeabilidade a novos membros movidos por necessidades semelhantes.
O caso específico da Costa da Caparica é particularmente interessante por ser o único ponto de contacto em permanência entre duas comunidades de pesca tradicional oriundas de pontos distintos: Algarve e Ílhavo, cujos confrontos foram particularmente célebres no século XVIII. Por outro lado, há muitos anos que se constata a capacidade de integração de elementos de origens não nacionais, nomeadamente africanos, sem conhecimento prévio das artes de pesca e, mais recentemente, de cidadãos de países de Leste, que encontraram nesta comunidade uma forma de sustento, apresentando uma capacidade de relacionamento e comunicação intercultural extremamente interessante. Porém, apesar de tudo isto, apesar da óbvia presença destas comunidades, que todos identificamos, permanece quer a dificuldade de compreensão desde o exterior da comunidade, quer algumas dificuldades de articulação dos pescadores no todo social em que se inserem, uma vez que habitam numa faixa de território litoral, que sendo extensa ao longo da costa, apenas ocupa alguns metros para o interior, mesmo contando com as incidências agrícolas suplementares em algumas comunidades piscatórias.
Tendo em conta as dificuldades sentidas e expressas pelos investigadores em abordar estas comunidades, parece aconselhável uma abordagem plural em termos metodológicos, ela própria capaz de gerar uma reflexão epistemológica.