A Múmia Era de Plástico?
Aterrei em Hanói com expectativas muito altas. Não foram contrariadas.
A cidade era bem acolhedora, com vários edifícios ainda reminiscentes da presença francesa.
Guerra com franceses e depois com americanos e depois com chineses e ainda mantinham as referências do passado colonial.
Como de costume, ao chegar e arrumar os sacos no quarto de hotel, fomos trocar dinheiro, combustível de todas as viagens.
Trocámos 100 dólares, só para começar claro, e em troca deram-me um tijolo monstruoso de dongs. Ora só o nome – dong – já é ilustrativo. Para verem como são as coisas, ainda hoje, um euro dá direito a cerca de 27.600,00 dongs. Não há carteira que aguente, só de carrinho de mão!
Enquanto por lá ficávamos, eu e o meu filho, o Vietname recebeu a visita do último general americano que comandou as tropas na guerra. Foi o general vietnamita Giap que o foi receber ao aeroporto. As suas primeiras palavras de recepção foram: “você está mais gordo!”. O General Giap morreu com 102 anos.
Como é natural, a penosa guerra contra os americanos ainda tem um peso extraordinário na identidade vietnamita, de resto, celebrada num museu que apresenta, além de inúmeros artefatos bélicos, quer dos vietnamitas, quer recuperados aos americanos, e também, muitíssima propaganda nacionalista.
No entanto, apesar disso, não ofusca o tradicional pragmatismo oriental. Porém, navegando com cuidado as ofertas capitalistas, muitas vezes completamente descabeladas.
Um exemplo disso foi a proposta americana de abrir uma cadeia de comida rápida tendo como logo a silhueta de Ho Chi Min e que se chamaria “Tio Ho”, naturalmente recusada. Pelo contrário, as fábricas de eletrónica, crescem como cogumelos, capitalizando uma mão de obra fiável e bastante mais barata do que a chinesa.
Como é que eu sabia que os vietnamitas estavam bem resolvidos sobre a sua vitória na sangrenta guerra com os americanos? Enquanto jantávamos calmamente “spring rolls” num restaurante com mesas numa varanda, pude observar um jovem a pegar uma mota de grande cilindrada com a bandeira americana pintada por todo o seu volumoso depósito. Sem complexos.
O nosso primeiro destino foi o museu da guerra, ou o museu militar, no fim do grande parque que constitui o centro de Hanói.
Percorremos as ruas arborizadas do parque, com um ambiente calmo e relaxado, bancos com pessoas, como nós, a gozar a sombra das árvores, quando um homem de meia idade se aproximou. Pedia lume.
Passei-lhe o meu isqueiro e com surpresa ele sacou de uma sovela do bolso e, enquanto fazia desenhos muito rudimentares no isqueiro, ia descrevendo: “pássaros no céu, tu, o teu filho e as nuvens. Um dólar”. E devolveu-me o isqueiro.
Foi o dólar melhor gasto da viagem.
Continuámos pelo parque fora, com paragem obrigatória no pequeno lago, cumprimentos a patos e cisnes, naturalmente, tal como dúzias de vietnamitas e turistas.
O museu correspondeu às expectativas. Armas de todos os tamanhos e para todos os fins. Quer dizer, na verdade o fim era sempre o mesmo: rebentar com o inimigo. Este inimigo foi variando, primeiro franceses, depois americanos e finalmente até chineses. O Vietname foi sempre mais ajudado pelos soviéticos do que pelos chineses, com quem partilham fronteira no norte do seu país.
Naturalmente, diversas salas do museu são mais dedicadas à propaganda do que à exposição das armas, ou mesmo das batalhas. Porém, como o museu é muito grande, contando com vastas áreas exteriores que apresentam grandes (e pequenos) aviões, entre blindados e artilharia pesada, a propaganda acaba por não ser demasiado preponderante.
O regresso, ainda pelo parque, foi lento e continuou prazeiroso. É incrível o papel que as árvores têm. Bem, o papel vem das árvores, claro, mas não foi esse o significado que pretendia.
Basta um conjunto de árvores para amenizar qualquer cidade, mesmo Hanói, que não era uma cidade com um edificado nem especialmente compacto, nem de grande altura.
Após diversas ofertas de transporte, especialmente de riquexós em que os passageiros vão à frente e o ciclista atrás, resolvemos aceitar.
Não calculava a diferença destes com os outros que já conhecia, em que o ciclista vai à frente. A sensação era completamente diferente. Parecia uma corrida de carrossel de feira!
Jantámos no mesmo sítio, o tal balcão para um pequeno largo triangular, e lá estava o motão com depósito de listas e estrelas ianques. Continuava a ser uma curiosidade naquele país tão martirizado pela guerra…
O dia seguinte foi dedicado a Ho Chi Min. Visitar a sua casa de madeira, pequena e despida de adornos, não faltando a secretária com caneta de tinteiro. No entanto, o adjetivo que mais se impunha era a sobriedade. Precisamente o que convinha, e se impunha, ao líder nacional nas condições em que viveu.
Fomos a pé até ao mausoléu, onde a múmia de Ho Chi Min era exibida e deparámos com uma extensa fila de pessoas à nossa frente. Vietnamitas e turistas.
Percebi que a guarda era muito exigente na revista aos sacos e mochilas de quem desejava entrar.
Fiquei preocupado porque trazia um canivete suíço, ferramenta que me acompanha em todas as viagens. Será que mo iriam tirar?
Realmente fui parado à porta e revistado, mas não foi o canivete que preocupou a guarda, foram os óculos escuros que estava a usar e que, para os guardas, representavam uma grande falta de respeito. Bastou tirá-los.
A múmia de Ho Chi Min
A grande sala, completamente imersa na penumbra, permitia que a fila de visitantes rodeasse o pedestal onde estava depositado o cadáver mumificado de Ho Chi Min protegido por uma espécie de campânula de vidro ou outro material transparente. Rodeamos o líder com um silêncio respeitoso.
Na verdade, se tivesse os óculos de sol postos não seria capaz de ver nada.
Regressámos ao sol e ar puro com um suspiro de alívio.
Segundo dizia o folheto, a mumificação foi possível graças à contribuição dos técnicos soviéticos. A verdade é que Mao Zedong não teve a mesma sorte e ninguém me convence que o que está no mausoléu da gigantesca praça de Tiannamen não é um corpo de plástico. Mas Ho Chi Min… enfim.
Para nos despedirmos de Hanói, o programa era assistir a um espetáculo anunciado como bonecos que dançam na água, o que como imaginam é bastante difícil de imaginar.
Antes de assistir fomos visitar o teatro e comprar os bilhetes.
Tratava-se de um grande edifício, o Thang Long Water Puppet Theatre, mesmo no topo do grande Parque Central, já tínhamos passado por lá várias vezes, o que acicatava ainda mais a curiosidade.
O teatro era muito maior do que esperava, com centenas de lugares e muitos deles preenchidos. Era um espetáculo tradicional e, claro que a curiosidade atingia muitos visitantes.
O palco era preenchido por um grande “lago” e no seu lado esquerdo, a partir da assistência, estava montado uma espécie de tribuna onde atuava uma pequena orquestra de instrumentos musicais tipicamente vietnamitas.
Um desses instrumentos, tão original que não resisti e acabei por comprar um, é o Dan Bau, uma espécie de cítara com uma única corda e uma haste com a qual se controla a tensão da corda, fazendo variar o seu som.
É incrível a quantidade e qualidade de sons que aquele instrumento de uma corda só consegue emanar com as experientes mãos dos músicos vietnamitas.
Quanto ao espetáculo propriamente dito revela uma singela inocência. Tanto que necessariamente nos faz recuar ao tempo da guerra e contrapor essa inocência com a resiliência e coragem dos vietnamitas.
Sendo tradicional no Vietname do Norte, o espetáculo é composto por contos tradicionais, ou seja, o espetáculo é composto por vários trechos, sendo os bonecos manipulados por vários artistas, talvez oito, que vêm até ao “lago” agradecer os aplausos.
Transmitem uma sensação clara de um momento único e singelo, uma emanação essencial da alma vietnamita. Inesquecível.
A Baía de Ha Long
A viagem para a baía de Há long foi nada menos que épica. Era suposto haver estrada até lá, mas em diversos locais ela simplesmente não estava presente.
Em determinado ponto, inclusivamente, a “estrada” dava lugar a uma travessia de rio através de uma jangada de juncos e madeira e bidons e sabe-se lá mais o quê. Mas sem crocodilos, o que era uma vantagem que foi decididamente realçada pelo responsável pelos barqueiros.
Quando lhe perguntei se tinha a certeza que não havia crocodilos ele garantiu. “Não, aqui não há. Só ali!” e apontou uma reentrância a cerca de 100 metros.
Fiquei muito mais descansado.
A fila para entrar na jangada e ser transportado para a outra margem era longa. E ruidosa.
O interessante é que permitia observar a espantosa diversidade de veículos que estavam na fila aguardando a sua vez. Muitos deles – tenho a certeza – eram fruto de mecânicos, decerto alucinados, que uniam peças e partes de outros veículos, formando, aí sim, verdadeiros carros híbridos. Mistura entre vários tipos de camionetas, até carros com motocicletas. E cavalos. E búfalos. Só visto.
Chegámos ao porto e tratámos de encontrar o nosso junco, que nos iria albergar por três dias.
Para chegar a ele tivemos de atravessar outros dois, saltitando entre cordas e outros aprestos. Mas chegámos e ocupámos uma divisão onde iríamos dormir 6 turistas, eu e o meu filho, e outros quatro, incluindo um suíço fascinado com os Counting Crows, que não parava de ouvir. Vira o disco e toca o mesmo.
O cruzeiro partiu e proporcionou a experiência deslumbrante das formações calcárias que emergiam das águas tranquilas da baía, enquanto o nosso junco navegava, quase sem atrito, parecendo voar sobre a superfície, quase sem lhe tocar.
As refeições eram agradáveis sem serem espetaculares, mas também não seria desejável comer muito porque aqui e ali parávamos e dávamos um intenso mergulho e algumas braçadas.
Curiosamente, o capitão e piloto nunca nos deixava ficar muito tempo. Quando subimos pelas escadas e ganhámos o convés resolvi perguntar ao patrão a razão da pressa. “Piratas”, respondeu depois de uma pausa.
Gaguejei para comigo mesmo. Caramba, ou crocodilos ou piratas. A vida aqui não é fácil. Para não falar nos americanos. Ou franceses.
Mas era verdade. Ainda hoje aquelas águas estão infestadas de piratas que atacam sem piedade veleiros e iates particulares, até com casos de extermínio de todos, tripulação e passageiros.
Acordámos com a banhoca que não faria sentido evitar, no mar, claro, teríamos muito tempo no hotel para a higiene.
Depois veio a visita à ilha de Quan Lạn, famosa pelo seu templo do mesmo nome. Na verdade a ilha é que tomou o nome do templo.
Tratava-se de um templo pequeno e térreo. As razões da sua fama prendiam-se mais com a devoção e, claro, os milagres que aí tiveram lugar.
Foi bom desentorpecer as pernas e deambular um pouco pelas ruas, poucas e pequenas, vendo o pobre comércio.
Acabámos por almoçar na esplanada de uma tasca rústica com um menu de prato único encomendado pelo comandante, prato esse que tivemos a possibilidade de escolher, claro. Ou esse, ou fomeca. Mas estava bom, com massa de fitas e peixe, muito condimentado, mas eu e o meu filhote estávamos já habituados a essas aventuras gastronómicas.
E mais ilhotas calcárias que misteriosamente emergiam do mar, verdejantes de vegetação, umas atrás das outras, numa visão própria de sonho.
Porém, com desconfiança, sempre ia dando uma vista de olhos nos muitos barcos e barquinhos que estavam por ali. Piratas?
A Baía de Há Long era uma zona de mar, parte do Mar da China, com o Vietname de um lado e a ilha de Hainan (Hainão), chinesa, do outro. Esta configuração oferecia uma reentrância protegida pelos dois países.
Mas sendo protegida, como explicar a presença daqueles fora da lei?
A questão está aí. Temos sempre a tendência para considerar os outros à nossa imagem. Vemos comunidades organizadas, com os mesmos elementos que nós, com os seus órgãos de governo e instituições e imaginamos que elas funcionam da mesma forma como aquelas que conhecemos. Mas não.
A margem de autonomia, por exemplo, entre os governos locais e o central é tão grande que alguns, como na China, estão à margem da lei e procedem como desejam e, em muitos casos, em proveito dos seus líderes.
É muito famoso o caso do enorme petroleiro (não era um barquinho de recreio) que foi capturado em águas internacionais e depois identificado num porto do sul da China. Nem se deram ao trabalho de pintar o nome ou substituir as boias que o identificavam.
O mar alto, ainda é terra de ninguém e sem grande controlo.
Por tudo isto, encostado à amurada, já no caminho de regresso, não deixava de olhar as outras embarcações com desconfiança e muita precaução. Não sei porquê, defendia-me à dentada?
Entretanto o capitão aproximou-se e perguntou: mais um último mergulho?
Para o diabo com a piratagem!
O Vietname era, para mim, uma incógnita, até à leitura desta crónica. Agora, já lhe começo a vislumbrar as belas paisagens e a grande cultura de um povo resistente, que o olhar perscrutador do cronista nos revela.